COISAS DE GUERRA

Os desintencionais escritos de dois jovens refugiados durante a segunda guerra mundial talvez represente a singularidade de um todo.


O caderno fora deixado por um importador de mobiliários antigos, após ter adquirido revistas, também antigas, cujos assuntos eram móveis… Folheando-o, retruquei que deveria ter cruzado mares.
– Omisso em alguma peça mobiliaria. O importador traz móveis de toda a Europa. – voltou a explicar o proprietário do Sebo.
– Brinde? – sondei.
– Brinde. – ofertou.
No interior do automóvel, ainda no estacionamento, voltei a olhar para o caderno ofertado. Viera da Holanda, observei no Sebo. Continha breves passagens de dois jovens vivendo sob “pega-varetas” durante a segunda guerra mundial. Em casa confiando no tradutor Google, debrucei leitura. O caderno pertencera a um escolar de nome Vander; havia algo dedicado não só a ele: descansem em paz. Extensivo aos familiares, certamente. Proprietários, acredito. De uma das unidades dos escombros onde o jovem alemão Saymon e a jovem holandesa Jolanda, autores dos escritos, se escondiam. Também entendi que não se tratava de um diário típico. Passatempo para afugentar a ociosidade em que viviam. Há inclusive uma passagem grotesca certificando isso. Saymon, flagrando Jolanda abanando, ela diz que a xereca ardia de vontade de “trepar”. Saymon retruca: se não há outra coisa para fazermos.
… São breves linhas. Suficientes, no entanto, para se refletir sobre coisas da guerra.
Saymon registra que não lhe entregaram tubo de ensaio e jaleco para enfrentar a vida. Que seriam bem-vindos, pois estava a caminho. Recebera vestes pesadas. Botas, capacete e armas. Sob orientação, como se soubesse atirar, matar quem se opusesse no caminho. Jolanda, por sua vez, endossa a queixa do companheiro. Diz que os pais dela e os dois irmãos foram levados à força, não os acompanhou porque, infelizmente, estava ausente. Desorientada vagou e vagou: "Onze heldere hemel, Saymon, is gestolen." O nosso límpido céu, Saymon, fora roubado.
Segundo Saymon, conheceram-se sob intenso bombardeio, no início de uma noite. Não entra em detalhe, pois como dito não se trata de intencional diário. Porém, sobre o tocante, constam as seguintes anotações: "... cem anos podem se passar em dez minutos. Não imaginavam que sairíamos dali casados, unidos pela compaixão. Sentimento grandioso. Carente e repelido. Clarões produzidos por artefatos mortais despencavam do céu e explodiam a metros distantes, iluminando-nos na noite de núpcias."
Os dias de núpcias passam, a ração acondicionada na mochila do soldado desertor alemão Saymon acaba. Jolanda, moradora da cidade, se prontifica em providenciar: “… na identidade constava algo que seria passaporte para o inferno, criado pelos homens. Sair durante o dia por demais arriscado. À noite também: os soldados estavam famintos. No entanto, quem se aproximaria de uma fêmea fedendo a merda? Espalhei-a por todo o meu corpo, usando-a adequadamente para infeliz ocasião. Ora, caso estivesse fedendo mais do que a própria atmosfera que respirávamos, o que poderia acontecer seria levar bofetões. Saymon reprovou a ideia, mas os nossos estômagos corroíam.”
As saídas noturnas de Jolanda se estendem. No entanto, os corpos exigiam nutrientes. Pois, o que conseguia trazer, era o de “melhor” que encontrava nos latões de lixo já explorados pelos catadores diurnos. Saymon assumiria a dianteira da obrigação, decidem. Jolanda o orienta por onde andar. Numa dessas noites, Saymon leva para o "lar" rim, fígado e coração. De gente?! Pergunta Jolanda espantada. De defunto. Responde Saymon. Jolanda vomita. Saymon resmunga “Wir sind im Krieg”: Estamos em guerra. E diz que o cardápio seria regrado para poder durar por três noites. Lá fora estava arriscado. Um colega o reconheceu. Consideravam-no desaparecido. Contou-lhe aventuras espetaculares, mas não valeria transmiti-las. Jolanda, limpando-se do vômito, Saymon pergunta se preferia ser magarefe ou consumidora. Responde que preferia ser consumidora. Mas as nobres iguarias trazidas seriam consumidas apenas refogadas? Com sal, enquanto durasse o estoque. Responde ele. Ela, por sua vez, diz: "Moge de zon ooit weer schijnen." Que o sol um dia volte a brilhar.
É tudo o que existe nas anotações referenciadas aos escombros onde '‘residiam’': 
O prédio ruiu harmonioso, restando para nós um aconchego.”  Referia-se certamente ao pavimento térreo. E acertadamente circulavam entre o quarto, sala e cozinha. Pois mencionam: cama, estante com livros e fogão: inútil por sinal... Aqueciam coisas de modo não convencional.
Saymon continua explorando as noites. A cada retorno, trazia notícias desagradáveis. Os países baixos, inclusive a Holanda, seriam bombardeados.
Jolanda relata que num desses dias, depois de “treparem”, então deitados na cama, refletindo sobre a vida, Saymon lhe pergunta se não foram infantis. Se não tomaram decisões equivocadas num momento de fraqueza emocional? “Sorry?” Arrependido? Inquiri ela. “Spekulieren.” Especulando. Retruca ele. Ela questiona: como estariam se não tivessem optado pelo “casamento”? Provavelmente estaria num campo de concentração e ele ou eu estaria morto. Ou nas trincheiras vivenciando empolgantes histórias. Pede: “We mogen niet vergeten.” Não devemos nos esquecer. “Niemals.” Nunca. Promete ele.
Derradeira anotação: Jolanda diz que havia atirado livros e mais livros de encontro à parede e chorava quando o então esquelético Saymon adentrou. Os estados de espírito deles contrastavam. Saymon, entusiasmando, disse que havia uma congregação religiosa que estava retirando judeus e insatisfeitos do país. Ela era judia e ele insatisfeito. “Olhando-me, nos abraçamos forte, e não tive como não exclamar: Oh Grote Heer God! Het is alles wat we willen.” Oh Grandioso Senhor Deus! É Tudo o que desejamos.


ILUSÃO OU FATO?

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