DAS TÊS MARIAS

Iza, ao questionar a mãe sobre um documento encontrado, escuta uma história a qual finaliza com um ato de acentuada amargura, frente aos fatos relatados.


– Mamãe, o que significa isso? “Eu, José Tarlo Sagoia, entrego a jovem Sofia Telhada a importância de…, para que nunca mais apareça chantageando-me sobre o fantasioso episódio do desaparecimento das três Marias.” Conheço apenas uma Sofia Telhada, mamãe, que é você. Encontrei o despacho arrumando seu armário.
A senhora Sofia, 57 anos, pula o susto e réplica:
– Se você fosse homem e tivesse emprenhado alguma garota, diria para que tratasse de ajudar no sustento da criança para também não ser chantageado. Porque fora justamente o que José Tarlo Sagoia fizera. Emprenhou sua avó e, desse fogoso ato, eu nasci e cresci ao léu. Barganhei a história do desaparecimento das três Marias para arrancar um trocado dele.
– Meu Deus!
– Meu Deus, digo. − replicou a senhora.
Segundos depois:
–… A propósito, mamãe, José Tarlo Sagoia fora, há décadas passadas, governador do estado. Diz ser filha dele?
– Qual o motivo do espanto?
– …?
A senhora aponta a cadeira. A filha, ao sentar-se, ouve:
– Vejamos. Estamos em Carmelo, uma cidade provida de um rústico caminho que direcionava à capital. Não pavimentada e sem iluminação elétrica. Por onde, aos 17 anos de idade, percorria quase diariamente os seus sessenta e cinco quilômetros de extensão, na escuridão da madrugada ao volante de um furgão fumacento para que, às 5 horas, pudesse estar aqui no mercado da capital entregando o nosso sustento. Em meio a isso, as obras da construção do campo de pouso avançavam. Num desses dias, perguntei à mamãe, a sua avó, Alvisa, se já tinha assinado o ‘acordo’ de remoção para Campão. Seríamos indenizadas e transferidas para esse lugar. Respondeu que não. Disse que José Tarlo Sagoia destacava-se, em primeiro lugar, nas pesquisas eleitorais para governador do estado. Retrucou que fosse feliz. E nós infelizes? Questionei. Olhando-me, retratei-me e manifestei preocupação com o nosso destino. Por que isso? Porque, nas terras de Campão, nem erva daninha brotava. Lembro-me de que chovia forte. Abandonou a mesa, aproximou-se da janela, manejou-a, forçando uma ventilação, ascendeu o cigarro e, como se pudesse remar contra a maré, disse que o terreno que ocupávamos era herança dos pais e estava legalizado. Repliquei que, imaginando sobre a eminente desestruturação que teríamos em Campão, a própria imaginação havia organizado coisas guardadas na mente. Começaria citando o senhor Julião Tarlo Sagóia, que a difamou. Afastou de si o seu lindo, querido e promissor filho José Tarlo Sagóia, e exigiu que ela silenciasse sobre o nome do pai da criança que carregava no ventre.
– Que era você?
– Justamente. Disse-lhe que ela havia nascido e crescido dentro daquele pequeno cultivo de flores... eu pela mesma forma. Era o nosso sustento e estávamos na iminência de perder. O que faríamos em Campão cujas terras nem erva daninha brotava? Existiam terras férteis à venda, mas o valor da indenização que receberíamos não daria nem para comprar mil metros quadrados, imaginando que agradaria sugerir que procurássemos papai. Péssima ideia. Olhou-me faiscante, atirou o cinzeiro na parede e se retirou. Mas estava certa. Será que havia algum sentimento dele por nós? Eram dezoito anos de ausência. Que ajuda nos daria? Além do mais, estava casado, levaria um passado nada acolhedor para a família, talvez até ignorado pela esposa. Suponhamos que nos desse algo. Mas alguma coisa não nos tiraria do iminente atoleiro. Precisávamos de significante importância para comprar uma área igual, ou melhor, a que ocupávamos.
– Viu na chantagem um caminho menos tortuoso.
– Só existia aquele, minha filha.
– Mamãe!
– Tinha tudo para dar certo: a história do desaparecimento das três Marias e as visitas que mamãe fizera ao senhor Julião quando este se despedia da terra.
– A vovó o visitou no leito da morte?
– O homem estava entregue às traças. Mamãe o visitou.
– … Quem foram as três Marias?
– Não as conheci. Uma história remota, a minha existência. Maria Lúcia, Maria Alda e Maria Clara. Seis, oito e dez anos de idade, respectivamente. Diziam que eram filhas do mundo. Certo dia, foram dadas como desaparecidas. O desconhecido testemunho apontava terem sido vistas pela última vez no interior de uma camionete preta. Na cidade de Carmelo havia oito camionetes pretas, se não parecidas, iguais. E o senhor Julião era proprietário de uma delas. Os boatos concluíam que as garotas ou haviam sido ‘consumidas’ no forninho. Ou foram negociadas com os bruxos das redondezas para serem usadas como peças nos trabalhos de bruxaria.
– Meu Deus!
– Uma história que até hoje não foi esclarecida… Mamãe era uma mulher psicologicamente arrasada. Sabia qual seria sua decisão. Ou viríamos para a capital tentar a sorte, ou encararíamos Campão. Então resolvi agir. Numa daquelas viagens à capital, visitei o cemitério Barbaquio e encomendei três ossadas de crianças. No dia seguinte, transportei-as para Carmelo e atirei na Vila Sílvia predominada por barrancos. Ainda chovia. A minha ideia era que a interpretação fosse a seguinte: o barranco desmoronou e revelou a macabra ossada. Não demorou que fosse avistada e a notícia logo se espalhou. O murmúrio não fora outro: eram os restos mortais das três Marias. No dia seguinte, usando da desculpa de rever um atrasado de certo cliente, me dirigi à capital ou, precisamente, ao comitê politico do doutor José Tarlo Sagóia. Depois de quatro horas de espera, recebeu-me. Cumprimentei-o e me apresentei: Sofia Telhada, filha da senhora Alvisa Telhada. Olhou-me, desfeito, disse-me algo que não levaria a nada e me mandou sentar. Sentando-me, perguntei se estava ciente da ossada humana que havia sido encontrada em Carmelo. Afirmando, perguntei se sabia que mamãe visitava constantemente o pai dele no hospital. Também confirmando. Disse que a revelação que faria independia de acreditar ou não. Por quê? Porque a Rádio Carmelo era provinciana, mas alcançava longa distância. O pai dele, o senhor Julião, havia confidenciado à mamãe ter sido o autor do sumiço das garotas. Olhou-me demoradamente. Levantou-se. E, após pensativas caminhadas, perguntou-me se estava chantageando-o. Respondi que sim. Porque tinha ciência de um deplorável ato familiar. Assim estava numa posição favorável em relação à sua imprescindível vitória nas eleições para governador do estado. Olhou-me sisudo e perguntou quanto queria. Mencionei o valor exposto no “despacho”. Dirigiu-se à porta, abriu e pediu para que retornasse no dia seguinte. E eu retornei. Chegando, olhou-me com desdém. Colocou a maleta sobre a mesa, mandou que conferisse a importância, redigiu essa declaração com papel-carbono entre as folhas, e mandou que assinasse. Fitei-o e assinei.
– Tudo acontecera assim?
− Assim.
– Vovó tem conhecimento disso?
– Contei a ela. Deu de ombros.
– Bastante deselegante, mamãe…
– Você pode se dar ao luxo de assim julgar. Considero proveitoso ter encontrado o documento. Soube da história de nossa próspera rede de floricultura MLAC. Plantio, honrosamente gerenciado por mamãe, aos setenta e sete anos de idade.
–… Engraçado… Sempre desejei saber o que significa MLAC.
– Os nomes das três Marias: Lúcia, Alda e Clara. Uma forma que encontrei de mantê-las vivas.
– Por que isso?
– Acho que já expliquei, não?

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